(no centro espírita, o doutrinador conversa com o espírito incorporado no médium)
Este é um daqueles companheiros truculentos e agressivos. Fala sem parar, em altas vozes, tentando impedir que o doutrinador tenha também a sua oportunidade de dizer alguma coisa. Por outro lado, falando continuadamente, mantém-se no estado de fuga, de alienação, girando sempre em tomo das suas idéias e das tarefas que procura realizar à sombra de poderosa organização espiritual. Lamentavelmente, para ele, nosso grupo mediúnico atravessou-se no seu caminho e pouco a pouco vai recolhendo alguns trabalhadores importantes. Diz ele, desabridamente e com a franqueza rude que o caracteriza, que na terra dele (Espanha), situações como essas eram resolvidas logo com a tortura e com a fogueira.
Queixa-se das nossas preces constantes que criam em torno de nós certas proteções. Para quê tanta prece? Falta de confiança ”nas potestades”, diz ele. Ridículo! Além do mais, nunca estamos sós: há companheiros espirituais que nos acompanham; chamados ”babás”, tomando conta de nós. Acresce que o Grupo utiliza o Evangelho, a seu ver, para criar sentimentos de culpa, para humilhar, para prender a pessoa num passado já esquecido e superado. Se nos houvéssemos encontrado com Paulo de Tarso, por exemplo, teríamos paralisado o grande batalhador, fazendo-o fixar-se nos seus desacertos. O mesmo teríamos feito com Madalena, cujo passado não era nada recomendável, segundo ele. Teríamos, pois, bloqueado esses dois excelentes trabalhadores se suscitássemos neles o sentimento de culpa pelo passado.
O Espírito alude, naturalmente, à técnica da regressão de memória que utilizamos, a fim de situá-los num contexto de realismo e dar-lhes a sacudidela que os acorda do torpor em que vivem a cometer desatinos. Depois de muito deblaterar e contestar, com a veemência que lhe é característica, os argumentos contrapostos pelo doutrinador, começa a sentir os efeitos da magnetização que lhe causa inexplicável mal-estar. Por isso, fica repetidamente a pedir a presença de um médico. Tomamos o diálogo nesse ponto.
— Um médico... Preciso de um médico. Você foi buscar um médico? A minha mente... estou entorpecido... O que é isto? Não faça isso. Tenho medo. Minha mente... Olha que horror! Que vocês fizeram? Hipnose... Minha cabeça... Não consigo. Estou confuso. Por favor! Onde está minha mente?
Por fim acalma-se um pouco, enquanto o doutrinador lhe fala. Ele ainda se queixa que dois companheiros já foram recolhidos e que ele não pode, portanto, sair “da linha de frente”. Tem “lá” o seu trabalho, trabalho muito bom. Começa a ficar incoerente, desligado do tempo, espaço e consciência de si mesmo. O doutrinador procura levá-lo ao passado.
— Espanha? Que é Espanha? Passado? Que é passado? Não conheço essa língua.
Começa, afinal, a emergir a história, ainda fragmentária, arrancada aos poucos, quase que palavra por palavra.
— Algarves - diz ele. Que é isso? Algarves...
— O que aconteceu no Algarves? Como você se chama?
— Alfonso. (É raro dizerem o nome) Dom Alfonso. Prelado. (Longa pausa e, em seguida:) Não sei... As palavras ... não acho...
Está ainda com a dificuldade inicial de articular o pensamento para convertê-lo em palavras através do médium. O doutrinador o estimula e lhe dá algumas instruções.
— Chove. Chove muito. Não acho palavras... Capela... Sozinho. Chove.
— O que você está fazendo?
— Liturgia. Preparo altar, batismo. Chove...
— De quem o batismo? Quem é a criança?
— Criança...
— É um menino ou uma menina?
— Não sei...
— Não sabe? Você vai batizar e não sabe?
— Chove muito... Não sei... alguém ajoelhado, chorando. Uma mulher...
— Você a conhece?
— Não sei. É Aleta. Confuso...
— Por que ela chora?
— O batizado... não quer. Sacrilégio...
— Por quê? O filho não é legítimo?
— Sacrilégio.
— Meu querido, todas as crianças são legítimas perante o Pai. De quem é essa criança?
— Aleta.
— Sim, mas e o pai? Quem é? Você o conhece? A criança morreu?
— Linda.. . Aleta. Roxo. Paixão. Igreja, capela, roxo...
— Eu entendi. Você tinha a ver com essa criança, não é verdade? É seu filho?
— Aleta. Menino. Na água...
— Foi ela que deu o veneno?
— Não. O batismo...
A dificuldade é realmente grande em colocar em palavras todo esse terrível drama de consciência que ele mal consegue esquematizar, vencendo resistências seculares. Como se percebe, ele era um sacerdote, seduziu uma jovem por nome Aleta e matou o menino com a água batismal previamente envenenada.
— Pois é, meu querido. Não se desespere. De fato, esta situação não é agradável de recordar-se. É sempre penoso para nós admitirmos as nossas faltas, mas isso não nos obriga a ficar retidos no mundo das dores. Podemos voltar sobre nossos passos.
— Aleta... Perjura. Perigo. Aleta é um perigo. Ameaça.
— Ela é uma ameaça para você?
— Sim. Ela ameaça. Perjura. Inimiga da Igreja. Cristo... sacrifício... A honra do Cristo. Álvaro... Irmão Aleta... Dom Álvaro.. . Vingar Aleta.
— E que fez Dom Álvaro?
Ele responde baixinho:
— Inimigo da Igreja! Dom Álvaro. “Don Álvaro es enemigo de Ia Iglesia...” Dom Álvaro, inimigo do Cristo... Eu, Dom Alfonso, prelado da igreja. Vinte anos... Dom Álvaro. Aleta, dezoito. Ameaça à Igreja. Chove... está chovendo.
Quando o doutrinador tenta fazê-lo retornar ao momento presente, ele diz:
— Chove. Está chovendo. Não posso sair. Dom Alfonso... (A chuva na noite tenebrosa em que ele preparou ó crime, parece um ponto de fixação, de ancoragem para seu atormentado espírito naquele passado lamentável.)
— Vem agora. Desperta!
— Desperta? Acorda? Sono... desperta. .. acorda... cabeça tonta...
Como se observa, ele não apenas assassinou o filho, ao ministrar-lhe o batismo, mas ainda tratou de eliminar, pelos processos então “legais” da Inquisição, os dois testemunhos vivos do seu gesto tresloucado: Aleta, a mãe da criança, e Dom Álvaro, irmão dela. Suas primeiras palavras, ao despertar da regressão, foram:
— Meu trabalho! Meu trabalho de divulgação!
— E onde estão Aleta e Dom Álvaro?
— Mortos.
Mas parece recair nas trágicas recordações, flutuando entre presente e passado.
— Isto é uma fantasia! Só pode ser... Qualquer coisa que você inventou. Você inventou isso! É o artifício do Evangelho. É o que eu falei. Pensa que vai me amarrar a uma culpa, é? (Conservou, na pronúncia, certo sotaque). Não vai. Isso já passou há tanto tempo que eles já devem ter tido outras vidas e estão felizes em algum lugar.
— E você está feliz?
— Estou feliz no meu lugar. Eles estão felizes em algum lugar no espaço... Qualquer coisa, sabe? Estão lá. . . Onde você acha que quer chegar? (Em seguida, num tom normal, como se buscasse a opinião do doutrinador) Eu não tinha o direito, não é?
— Não sei, meu querido. Não o estou acusando de nada.
— Eu não tinha o direito, está certo... (Volta a gritar). Mas você também não tinha o direito de mexer com isso!
— Não, meu caro. É a sua consciência que fala. Não eu. Ouça-a.
— Eu não tinha o direito.
— O que você acha?
— Você é que tem de achar. Não eu.
— Não tinha o direito. Matei os três. Não! Não! Eu não matei os três: só um! O menino... Os outros, foi o Tribunal; não eu. Não tenho nada que ver. Não me ponha essa culpa na consciência!
— Ninguém está botando culpa na sua consciência, meu querido.
— Não tenho nada que ver com isso. Tenho o trabalho do Cristo que eu preciso... preciso... (Parece hesitar na conclusão, agora que confronta aquilo que diz com o que faz). O Cristo disse não matar! Não levantar falso testemunho. Não desejar a mulher do próximo. Não matar! Não matarás! (Está citando trechos do Decálogo, mas não se pode dizer que cita o Cristo erradamente, porque Jesus declarou repetidamente que não vinha destruir a lei, mas fazê-la cumprir).
O doutrinador se aproveita da pausa que se segue para citar pensamentos de Jesus:
— “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. “Os meus discípulos serão conhecidos por muito se amarem.” “Amai-vos uns aos outros...”
E ele prossegue, já em pranto:
— “O que fizerdes a qualquer um desses pequeninos...”
— Peço a você, meu querido, que essa dor que traz há tanto tempo não o paralise nas tarefas do desengano, da mentira, da insistência no erro.
— Aleta, onde está?
— Você não precisa ficar lá, onde está. Lá você nunca vai encontrar a sua paz, a sua felicidade. Os caminhos da realização espiritual às vezes têm que passar pela dor... Eles o perdoam, mas é preciso que você se apresente diante do Cristo como...
— Como assassino? — grita ele. “Caim, onde está teu irmão?”
— Sim, mas também como a pessoa que deseja regenerar-se, que busca o perdão, que pede uma nova oportunidade. Hoje você está tendo aqui uma oportunidade que Ele lhe concede. Não eu. Não tenho poderes para isso e nem sou melhor do que você, mas você pode regenerar-se.
— Sou um Caim. Caim não tem chance.
— Como não? Judas teve chance. Você o citou no princípio de nossa conversa. Ele não se redimiu? Como você não pode? Por que não? Tenha confiança no Cristo. Dê-nos a oportunidade de o ajudar. Venha conosco. Repouse, medite e espere a sua oportunidade.
— O ardil... o ardil... que você usa sempre. Pegou-me.
— Perdoe, irmão. Não foi com a intenção de o magoar, nem de o humilhar. Foi para o ajudar. A sua consciência é que o pegou. Não eu. Ela é que o chama ao dever, à realidade. Por que você vai mentir a si mesmo?
— Pegou-me... pegou-me!
— Fique conosco, então. Nós o aceitamos como você é, meu irmão, porque também somos imperfeitos. Também temos faltas a resgatar. Também temos dores, mas não vamos fazer das nossas dores um instrumento da mentira.
— Não posso resgatar, não posso voltar... ao passado. Já passou.
— Temos que caminhar na direção do futuro e não ficarmos presos ao passado. Que você realizou nesses séculos todos? Que você fez?
— Que eu fiz? Matei... queimei... torturei... Isso que eu fiz! Odiei, traí, persegui...
— Agora você está com outras disposições de espírito. Você quer realizar novas tarefas.
— Onde, como e quando?
— Comece hoje, agora. Não espere mais.
— Eu tinha uma tarefa. Senhor! Senhor! Tiraram-me a tarefa... Senhor, onde estou? Senhor! Perdi-me... Senhor! Não sei o caminho... Senhor!
Nesse ponto é retirado pelos nossos Amigos Espirituais e segue para repousar, meditar, planejar, sofrer, resgatar-se um dia. Um pensamento fraterno de amor por Dom Alfonso e por todos aqueles que se envolveram nesse doloroso episódio.